quarta-feira, 6 de maio de 2009

A metáfora do lápis

O laboratório de computador: uma má ideia, atualmente santificada
Gavriel Salomon*

 
Há 20.007 anos, quando nossos ancestrais habitavam as cavernas, as crianças - que não tinham idade para caçar - eram diariamente mandadas a uma sala da caverna, para diminuir a destruição e o incômodo que causavam. O mais distinguido ancião da tribo que tivesse passado da idade de caçar era encarregado delas, e o melhor que podia fazer era ensinar-lhes a tradição, a mitologia, e a boa conduta na vida diária da tribo. Decorando, as crianças eram logo capazes de recontar, palavra por palavra, a história do Grande Orelha, o grande caçador de mamutes, de contar nos dedos dos pés e das mãos o número de folhas de figo necessárias para temperar uma sopa de leão para doze pessoas e de recitar os 17 versos do grande poema do Fogo que Podia.

Aprender não era fácil. Afinal, só havia uma quantidade determinada de coisas que poderiam ser memorizadas mecanicamente e só cálculos simples poderiam ser feitos nos dedos das mãos e dos pés. Ainda assim, esse aprendizado era realizado com prazer por todos.

Um dia, a palavra chegou com os pássaros migratórios de uma nova tecnologia, uma ‘tecnologia em muitos séculos de invenções’: O Lápis. Foi um burburinho é, sem hesitação, dois anciões foram mandados à Grande Caverna para aprender tudo sobre aquela maravilha. Quando voltaram, uma sala especial da caverna foi imediatamente aparelhada para se fazerem estudos sobre o lápis. Foi acarpetada com as maiores folhas de mamoeiro e mobiliada com almofadas especiais, feitas de pêlo de camelo (daí a origem da palavra software). Nenhuma criança podia entrar na sala sem lavar as mãos!

Fascinado com a nova tecnologia, o ancião mais voltado para o futuro foi nomeado para começar o planejamento e o ensino dos Estudos sobre a Capacidade do Lápis na sala recém aparelhada. Aliás, bastante cedo, surgiu um completo e o mais interessante currículo de Lapislogia. E como era interessante! O currículo trazia tópicos maravilhosos! Como apontar um lápis e como usar a outra ponta para apagar; como equilibrar um lápis na orelha e como segurá-lo entre os dedos. A criança estudiosa, que tivesse sido bem sucedida nessas etapas mais difíceis, poderia começar a usar o LapisLogo (para desenhar flores), o LapisScribe (para rabiscar letras) e o LapisSupposer (para traçar a área de folhas de desenho incomum). As crianças mais bem sucedidas, a nata da nata, poderiam ainda entrar no LapisBase - para enumerar as invenções de armas da tribo, o campo de caça e a família das árvores.

Um desenvolvimento interessante deu-se bem diante dos olhos dos anciães. As crianças começaram a escrever.

Havia, é claro, alguma preocupação com relação à possibilidade de esse novo empreendimento interferir (ó Deus!) no que tinha sido desenvolvido no ensino de rotina da caverna regular. Lá, os professores (naquele momento já havia dois) estavam verdadeiramente preocupados como fato de que a introdução do lápis na sala privilegiada pudesse forçar algumas mudanças no aprendizado mecânico, tão bem estabelecido. Na verdade, havia uma mulher da tribo, conhecida pelo seu modo provocativo de encarar a vida (ela uma vez sugeriu que as crianças inventassem suas próprias histórias, mas é claro que em silêncio), que propôs usar o lápis em todas as atividades de aprendizado das crianças, talvez para escrever, possivelmente para fazer contas.

Mas não havia realmente espaço para esse tipo de preocupação. Por que, afinal, alguém, com exceção da excêntrica mulher, chegaria a sugerir que aquele maravilhoso currículo de Lapislogia, supervisionado por renomados peritos, com suas possibilidades de desenho, escrita e cálculo, fosse tirado da sua sala especial para substituir o aprendizado automático? Por que um lápis deveria ser usado como instrumento nas rotinas diárias? E, o mais importante, por que no mundo alguém iria pensar em acabar com a mais glamurosa das salas, tão bem acarpetada e mobiliada, e ter sua peça mais valioso, o Lápis, distribuída entre outras salas e a professores de menor merecimento? A sabedoria prevaleceu. Não se permitiu a entrada de lápis na sala de aprendizado regular.


Até as más idéias ganham autonomia funcional. E, quando isso acontece, ideologias, justificativas, papéis sociais e antigos procedimentos operacionais padronizados continuam vivos. Além disso, elas se tornam santificadas. O papel de perseverança obstinada acaba. Pense na gravata borboleta ou na posição das letras QWERTY nos teclados.


Quatro afirmações errôneas
Para começar, a idéia do laboratório de computador foi uma idéia tão má? Foi sim. E foi uma má idéia porque era (e ainda é) baseada em quatro afirmações errôneas a respeito do que são os computadores e de que papel teriam potencialmente na educação. Uma dessas afirmações errôneas é a de que o computador é uma entidade por si mesma e por isso merece um ‘laboratório’ especial, um currículo especial e um professor especial. Entretanto, o computador não é uma entidade independente (exceto no contexto da computação). É um instrumento, semelhante - mas muito mais interativamente ‘inteligente’ - ao lápis, ao microscópio e ao livro. E, para estes, não temos ‘laboratórios’ especiais porque são usados como instrumentos manuais, bem integrados nas atividades diárias de aprendizado. O computador é um instrumento para fazer e criar (Sheingold, 1987) a serviço de metas que estão além dele mesmo. Não se pode usar um processador de texto a serviço do processamento da palavra; ele é usado para escrever ensaios, artigos, reportagens ou poemas. Não se pode construir modelos apenas por construir; constróem-se modelos para se conseguir uma compreensão melhor da ecologia, entender como as variáveis interagem e qual é o significado de modelos científicos. E não se programa em Logo com o propósito de programar (seus resíduos cognitivos são de qualquer modo insignificantes - ver Pea & Kurland, 1984; Salomon e Perkins, 1987); na verdade, programa-se em Logo para acumular novos insights, fazer novas descobertas em matemática ou na ciência. Além disso, o computador tem sido separado de onde os objetivos dirigidos da escrita, da ciência e da matemática são aprendidos.

Uma outra afirmação importante e igualmente não justificada é a de que o uso do computador é para ser aprendido como algo em si mesmo. Mas, volto a dizer, adquirem-se habilidades em computador - tanto quanto se aprende a usar o lápis, a dirigir um carro ou a calcular - não para que alguém se torne um mestre no assunto, mas para que possa fazer algo útil com essas habilidades. As aulas sobre processadores de textos, construção de modelos, programação ou sobre o uso de um banco de dados são tão úteis quanto as que tratam do uso de enciclopédias, lápis ou microscópios. Os alunos aprendem a usar essas coisas quando precisam saber algo a mais, quando desejam escrever e quando desejam examinar a consistência de uma gota d’água. Por que, então, deveria o uso do computador ser ensinado como algo à parte?

Uma terceira afirmação é a de que o computador pode ser apenas somado a diferentes práticas instrucionais não mutáveis: o computador como um auxiliar. Mas se isso era talvez justificado para a televisão ou outras tecnologias nem caras nem inteligentes, o uso do computador como um auxiliar viola sua natureza básica e potencial. O computador é um instrumento muito caro, muito versátil e muito inteligente para ser usado como um remendo para reparar ensino deficiente. Além disso (como acontece com todos os instrumentos), o uso do computador como instrumento traz consigo afirmações implícitas, cuja violação o torna inútil. (O capô de um Chevy oito cilindros pode ser usado para ferver água, mas não foi desenhado para isso; o uso de um carro supõe mobilidade e independência.) Melhores programas de computador permitem a criação de parceria intelectual com seus usuários (Pea, 1987), parcerias que convidam à geração e à verificação de hipóteses ‘extravagantes’, à composição de novas idéias, à exploração de novos temas na ciência, à consulta autônoma de bancos de dados. Essas atividades, muitas das quais são praticamente irrealizáveis sem o computador, envolvem o aprender fazendo, por meio de atividade grupal e exploração cooperativa, intensa comunicação entre os alunos, e um professor que é o regente dessas atividades - e não a fonte de todo o conhecimento. Pode qualquer uma dessas atividades ser feita no laboratório de computador, longe das aulas de Inglês ou de Ciências?

Uma quarta afirmação é a de que o uso efetivo do computador depende somente da qualidade do software e do courseware usados. O uso efetivo do computador, o tipo que incorpora o aprendizado na instigação intelectual, o tipo que engaja as crianças numa seqüência mais desenvolvida de pensamento, numa seqüência mais elevada de exploração e de comunicação significativa, requer, é claro, um bom software. Mas o bom software é apenas necessário, não uma condição suficiente. As crianças não aprendem com o software ou com o courseware; aprendem a partir de atividades intelectuais objetivamente dirigidas que o bom software proporciona e a que ele convida. E tais atividades podem ser desenvolvidas apenas quando atividades diárias de aprendizado regular são realizadas num contexto de sala de aula que favorece o seu desenvolvimento.

Aliás, para ser um instrumento efetivo, não apenas um acréscimo, a introdução da atividade relacionada ao computador deve ser acompanhada de uma série de outras mudanças. Na verdade, quase tudo na aula deve mudar para tornar entrelaçados o currículo, as atividades de aprendizado, o comportamento do professor, as interações sociais, os objetivos de ensino e a avaliação, num ambiente de aprendizado orquestrado de forma totalmente nova. Para usar uma metáfora apropriada, não é a flauta, importante como é, que faz a música; é a orquestra inteira. O computador, nesse aspecto, é um gatilho crucial para a mudança, mas não pode ser um gatilho muito efetivo se nada mais é disparado por ele.


Descrição de caso
Uma breve descrição de caso ilustrará como o computador pode ser efetivamente usado sem ser relegado a um ‘laboratório’ isolado, causando uma profunda diferença no aprendizado.

Numa classe de sexta série, introduziram-se computadores Apple II para estudar o continente europeu. Os alunos foram divididos em grupos de três a quatro, e a cada grupo foi dado um computador e uma combinação de processador de textos e bando de dados (Apple Works). Não foram dadas aulas de ‘capacidade do computador’. Todos os alunos sabiam que tinham de estabelecer 15 maneiras (critérios) para comparar os diferentes países da Europa, montar isso no banco de dados e sugerir hipóteses sobre como as regiões diferem umas das outras. Se aprender a construir um banco de dados era quase um desafio, chegar a mais de dois ou três simples critérios era um desafio de fato. Bem, você tem o tamanho de um país (descoberta: ‘tamanho’ significa mais de uma coisa!) e tem a localização (outra descoberta: a divisa). Que mais? A economia! Mas como descrever a economia em uma palavra?

A pesquisa intensa, o intercâmbio de idéias, o exame de atlas e enciclopédias, o desenvolvimento de escalas de medida e similares num período de mais de três semanas produziram um conjunto de critérios novos e refinados: grau de industrialização, religião dominante, proximidades de fontes de água, sistema político, divisão política. Agora que cada grupo tinha como resultado do próprio trabalho um banco de dados respeitável, o verdadeiro desafio começava. O que comparar e como fazê-lo? Trocaram-se novamente idéias e sugestões, breves relatórios foram escritos, livros foram consultados, hipóteses foram formuladas e testadas. Os dois grupos não chegaram às mesmas comparações. Alguns compararam Norte e Sul apenas para descobrir diferenças no clima, na religião e na industrialização. Outros compararam Leste e Oeste e descobriram diferenças de sistemas políticos e econômicos.

Outros, ainda, compararam as famílias lingüísticas e descobriram a singularidade da Hungria e da Finlândia. O comum a todos, no entanto, foi a curiosidade intelectual, o sentido do verdadeiro aprendizado, a descoberta dos benefícios da cooperação e, sobretudo, o sentimento de que aquele conhecimento significativo - sobre a Europa e sobre o computador - tinha sido adquirido.

Perceba que o computador, apesar de indispensável, não era mais do que um gatilho para mudanças. Nada mais foi o mesmo naquela classe. Então, você me pergunta: qual foi a contribuição ‘líquida’ do computador? Pergunta impossível de se responder. Qual é a contribuição ‘líquida’ de Isaac Stern tocando violino, num concerto para violino de Beethoven?

Obviamente, nem todo aprendizado em classe pode ou deve ser feito dessa maneira, bem como nem todos os dias de aula podem ou devem ser dedicados à exploração e à descoberta permitidas pelo computador. Além disso, uma escola não é apenas um número suficiente de computadores para equipar as salas de aula, com um número suficiente de computadores para todo o ano escolar. Mas então, que tal trabalhar em turnos - levar computadores até as salas de aula por períodos limitados de tempo em função de projetos planejados? Na verdade, algumas escolas têm feito exatamente isso e descoberto novos usos para aquela sala de caverna inútil - o laboratório de computador.


Conclusão
As mudanças observadas acima não podem acontecer enquanto os professores não tiverem um número suficiente de computadores na sala de aula, mesmo que seja por períodos limitados de tempo. O que deve ter sido inicialmente uma idéia bem intencionada, embora deficiente, tornou-se um obstáculo para mudar. Laboratórios de computador tornaram-se auto-sustentados, entrincheirados e admitidos como bases de poder. Agora, temos professores de computador e, em algumas escolas, especialistas em computador. Porém, não temos inovadores de currículo que - dentre suas várias áreas de especialização - também sejam capazes de selecionar softwares e ajudar outros professores a integrá-los no ensino cotidiano. Uma entidade fundada em afirmações não garantidas está servindo a si mesma e mantém sua existência isoladamente. A Sala da Caverna do Lápis da minha história, com seu currículo e professores independentes, está realmente no caminho da capacidade de ler e escrever: a sala de aula.


Referências Bibliográficas
PEA, R. D. Integrating Human and Computer Intelligence. In R. D. Pea and K. Sheingold (Eds.), Mirrors of Mind: Paterns of Experience in Educational Computing. Norwood, NJ: Ablex, 1987, 128-146.

PEA, R. D., and Kurkland, M. On the Cognitive Effects of Learning Computer Programming. New Ideas in Psychology, 1984, 2, 137-168.

SALOMON, G., and Perkins, D. N. Transfer of Cognitive Skills from Programming: When and How? Journal of Educational Computing Research, 1987, 3, 149-169.

SHEINGOLD, K. The Microcomputer as a Symbolic Medium. In R. D. Pea and K. Sheingold (Eds.), Mirrors of Mind: Patterns of Experience in Educational Computing. Norwood, NJ: Ablex, 1987, 198-210.


*Gavriel Salomon é professor universitário no College of Education, Universidade do Arizona, Tucson, Arizona.
Publicado em Educational Technology, Englewood Cliffs, 30(10):50-2, Oct. 1990.

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